terça-feira, 21 de abril de 2009

Trapezista

"Depois de cabriolas, cambalhotas e piruetas, eu, Amadeu o trapezista, volto finalmente a Arganda del Rey. Julgavam-me morto e eu também. Conheço pessoas que escrevem sobre mim, contam imensas histórias à volta dos trapos encravados no fecho das malas de viagem que invadem a vila de solstício a equinócio, dos sapatos que pendulam pelo cordão e abanam na minha andança, dos saltos de trapézio em trapézio que afligiram a doença cardíaca da Dona Filomena dos Anjos, a ex ministra da cultura de Valência pois acabou por falecer nesse mesmo instante. Desde aí e desde sempre, o amor/ódio à volta do público participante e não participante tomou conta de mim. Nos balanços olhava nos olhos o pânico daqueles seres de sombra e o brilho nas crianças da frente chocando com os focos de cores. Era na minha performance que ele mais silencioso ficava, os tambores eram os corações, e as palmas os meus pés de volta à barra. O ranger dos meus músculos ao agarrar as suspensões, a espinha distendendo o corpo até à ponta do meus ossos, adrenalina se olho para baixo e para os seus rostos, deixo-me cair, só para sentir a multidão estremecer, renascendo de novo ao topo dos céus!
A cada espectáculo a esquizofrenia foi domesticando-me, sentia-me um leão a dançar ao riso demoníaco do domador, procurava na plateia cada cabelo em pé, cada grão de pele arrepiada, cada susto, as palmas, os olhos esbugalhados, a córnea por lubrificar...mas o riso não vinha do meu número de circo, nunca. Pois nunca esteve destinado. Vingava-me nos duplos saltos mortais, frenéticos, eles queriam parar-me com o olhar, com os punhos, com os dentes serrados de medo, eram eles que estavam ali. Era o público que balançava comigo. Identificavam-se com a minha doença e histeria. Até que a minha arte começava a incomodá-los, as pessoas já não me fitavam, não queriam ouvir-me, aquele espelho pendente mostrava-lhes o mais sombrio de cada um. E obviamente abandonaram a tenda no meu último salto.
Vicente, mais do que o meu patrão, um pai e amigo, olhou-me de cabisbaixo, e ambos concordámos que era altura de voltar, nem que por férias, ao meu habitat longe do nómada.
Agora de pés em terra de minha mãe, vejo finalmente risos da minha chegada, o pôr-de-sol chega sempre para nos ver...Isabel, santa Deusa lhe abençoe que me espera a cada estação do ano, volto hoje na sua predilecta, onde a cada volta terrestre ao sol vejo-a mais uma vez de novo regando as flores, desta vez há tulipas vermelhas, amarelas e aquele cabelo espirando em seu redor move-lhe o pequeno rosto em direcção ao meu. Se vós a vísseis de flores na mão, imóvel, quieta à espera do meu corpo...eu sou o trapezista do mar despedaçando-me contra a rocha."

3 comentários:

  1. Meu deus *.* Fiquei completamente presa a este texto... Foste tu que escreveste?

    (desculpa não comentar mts vezes, mas só consigo comentar quando mudo de pc :S)

    beijinho! :D

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  2. Se puderes, lê isto ^^

    http://jolishome.blogspot.com/2009/05/apelo.html

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