quarta-feira, 29 de abril de 2009

Chinesas

Encazinei-me deliberadamente, peguei na chinesa e arremeaçeia-a ao lixo
onde já se viu tamanha consumissão!
Proíbo toda a gente da casa! Que se desenrolem e desandem.
Meto os netos lá para trás, a mãe fica em casa e eu vou ao lado do meu cunhado.
Jamais levaria o carro.
Porque nunca me dei bem com chinesas.
Na verdade elas é que nunca se deram bem comigo.
Tenho 57 anos e nunca precisei delas para nada!
Inevitávelmente elas nunca precisaram de mim também.
As seguintes gerações olham-me como uma infértil tecnologica, ou se melhor, uma frustrada oriental. Na verdade admito-o, com franqueza, mas se estes canalhas olhassem para o que se perde aqui fora...


terça-feira, 21 de abril de 2009

Trapezista

"Depois de cabriolas, cambalhotas e piruetas, eu, Amadeu o trapezista, volto finalmente a Arganda del Rey. Julgavam-me morto e eu também. Conheço pessoas que escrevem sobre mim, contam imensas histórias à volta dos trapos encravados no fecho das malas de viagem que invadem a vila de solstício a equinócio, dos sapatos que pendulam pelo cordão e abanam na minha andança, dos saltos de trapézio em trapézio que afligiram a doença cardíaca da Dona Filomena dos Anjos, a ex ministra da cultura de Valência pois acabou por falecer nesse mesmo instante. Desde aí e desde sempre, o amor/ódio à volta do público participante e não participante tomou conta de mim. Nos balanços olhava nos olhos o pânico daqueles seres de sombra e o brilho nas crianças da frente chocando com os focos de cores. Era na minha performance que ele mais silencioso ficava, os tambores eram os corações, e as palmas os meus pés de volta à barra. O ranger dos meus músculos ao agarrar as suspensões, a espinha distendendo o corpo até à ponta do meus ossos, adrenalina se olho para baixo e para os seus rostos, deixo-me cair, só para sentir a multidão estremecer, renascendo de novo ao topo dos céus!
A cada espectáculo a esquizofrenia foi domesticando-me, sentia-me um leão a dançar ao riso demoníaco do domador, procurava na plateia cada cabelo em pé, cada grão de pele arrepiada, cada susto, as palmas, os olhos esbugalhados, a córnea por lubrificar...mas o riso não vinha do meu número de circo, nunca. Pois nunca esteve destinado. Vingava-me nos duplos saltos mortais, frenéticos, eles queriam parar-me com o olhar, com os punhos, com os dentes serrados de medo, eram eles que estavam ali. Era o público que balançava comigo. Identificavam-se com a minha doença e histeria. Até que a minha arte começava a incomodá-los, as pessoas já não me fitavam, não queriam ouvir-me, aquele espelho pendente mostrava-lhes o mais sombrio de cada um. E obviamente abandonaram a tenda no meu último salto.
Vicente, mais do que o meu patrão, um pai e amigo, olhou-me de cabisbaixo, e ambos concordámos que era altura de voltar, nem que por férias, ao meu habitat longe do nómada.
Agora de pés em terra de minha mãe, vejo finalmente risos da minha chegada, o pôr-de-sol chega sempre para nos ver...Isabel, santa Deusa lhe abençoe que me espera a cada estação do ano, volto hoje na sua predilecta, onde a cada volta terrestre ao sol vejo-a mais uma vez de novo regando as flores, desta vez há tulipas vermelhas, amarelas e aquele cabelo espirando em seu redor move-lhe o pequeno rosto em direcção ao meu. Se vós a vísseis de flores na mão, imóvel, quieta à espera do meu corpo...eu sou o trapezista do mar despedaçando-me contra a rocha."

domingo, 12 de abril de 2009

Arquitectura de Luz

Torneio-te nesse mesmo espaço onde te encontras
e ah olha-me pois fito os teus olhos nos meus e respiro
debilmente respiro em influídos
enquadrados em compassos pesados
que o tempo baixará a frequência
E se te peço que arquitectes à tua volta,
sem desconectares a coligação pupilar,
o cheiro a carmesim, o chão engolindo as paredes
o tecto a desabar slowmotion
em sentido contrário da gravidade
a manhã entra-te pelos cabelos abaixo
irradia-te por fora
e eu por dentro
E mais!
Se eu te pedir que urdas
que prevejas o teu naufrágio em mim
traçarás a épica utopia.

Nós cantamos bem alto nos céus
tão que bem alto que não chega aos terráqueos
muito menos aos submundos do inferno
a nossa voz dispersa-se no Paraíso.

Eu, parceiro de luz, sou o que o teu beijo me fez ser
Criatura infinita vivente inquieta por te ver.

Catherine de Miranda

terça-feira, 7 de abril de 2009

magnanimidade

Emudeço, sentilando açucenas ao piano. Cantando "sim, o vento embala-me assim", shimuando, onomatopiando, e só o meu gato lhes respinga tirinando. Embora relance para trás, o olhar e o som. Que voa. Numa Luz rainha.
Se posso ver-te se me fecho nos olhos, se posso. Porque sinto que devo.
Levo-me com som, dentro do campo etéreo debaixo das pálpebras, a secreta passagem intemporal, a única extensão espacial onde adejamos.